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segunda-feira, 14 de abril de 2014

O médico e a síndrome do dentista mergulhador

Vocês já assistiram ao desenho Procurando Nemo?

Eu já assisti algumas vezes. A primeira vem em que o vi ainda nem sonhava em ser mãe. Meu marido havia viajado por alguns dias e eu passei na locadora para ver todos os filmes que eu gostaria de assistir, mas que ele não tinha vontade de ver comigo. Desenhos animados eram alguns deles.

Cabe ressaltar que hoje, pelos filhos, ele assiste a vários desenhos animados. Re-pe-ti-da-men-te! Não posso deixar de sentir uma certa satisfação sarcástica com isso. :)

Mas voltando ao Procurando Nemo...

Semana passada minha filha pediu para vermos esse desenho novamente e uma cena me chamou a atenção: a cena em que o dentista mergulhador retira o Nemo das redondezas do coral e o leva num saco plástico para seu aquário particular.

Ao falar sobre o peixinho a um paciente ele explica algo como isso: o pobrezinho estava morrendo no coral e eu o salvei.



No mesmo instante eu me lembrei dos médicos com quem tive a oportunidade de conversar sobre o nascimento do Pedro - o atual pediatra dele é um deles - e alguns médicos que se manifestam em entrevistas sobre parto natural, principalmente o domiciliar.

Em todas as oportunidades eu ouvi diversas falas sobre os muitos problemas relacionados com o parto normal, desde risco de morte até traumatismos e problemas psicomotores. O médico e a medicina estão ali para salvar aquela mulher e aquele bebê desses males.

Eu, como uma pessoa apaixonada pelo assunto e estudiosa do parto desde o nascimento da minha primogênita, entendo perfeitamente essa postura médica, principalmente em obstetras e pediatras. Durante sua formação médica eles passam anos da vida aprendendo sobre as anomalias, sobre tudo o que pode dar errado -  e dá algumas vezes - durante o evento parto.

Em todas as vezes, a fala que mais me chama a atenção é o medo que eles sentem de não poder controlar o parto. O parto é um evento imprevisível, ainda que possa gozar de alguma previsibilidade. O parto é algo que acontece no corpo da mulher, interno, silêncio, penumbra.

Então, diante de toda essa incerteza, ainda que se saiba através das evidências científicas que cerca de 85% das mulheres são gestantes de baixo risco e teriam seus filhos saudavelmente sem intervenções, o médico não consegue simplesmente observar, acolher, assistir. Ele tem que agir. E na sua ação, tal qual o dentista mergulhador do desenho do Nemo, acaba piorando uma situação que estava sob controle e que terminaria bem, sem a necessidade de intervenções.



Caso o dentista mergulhador fosse um bom observador e tivesse a paciência de contemplar algo que ele desconhecia -  a vida marinha no coral - muito provavelmente ele teria visto o pequeno Nemo, após sua crise de afirmação de independência, retornar para perto do pai, no coral. São e salvo. O pai lhe daria uma bronca por ter se afastando e fim da história.

O que vimos no desenho, porém, foi a ação do dentista. Uma intervenção no curso natural dos acontecimentos, uma péssima observação sobre o que estava a sua frente. Ele não fez por mal, acreditava com todas as suas forças que estava salvando aquele peixinho da morte!

O dentista, tal qual  médico intervencionista, acredita que está agindo em prol do bem estar. Mas, na maioria das vezes, está salvando alguém que não precisa ser salvo. Os médicos acreditam piamente que salvam as mulheres e seus bebês quando agem de forma intervencionista, sem a menor necessidade.

No caso do pequeno Nemo, a intervenção do dentista deu origem a uma jornada perigosa de seu pai para encontrá-lo. Felizmente, tudo acabou bem.

No caso das mulheres que sofrem intervenções desnecessárias, a jornada é igualmente perigosa e pode terminar com a morte da mãe, do bebê, ou de ambos. Felizmente, em muitos casos, tudo termina bem.

Mas e quando não termina?

O obstetra humanizado Ricardo Jones, em seu livro Memórias de um Homem de Vidro, narra uma cena de parto que acontece no Centro Obstétrico e que, segundo ele, é um divisor de águas na sua atuação médica de assistência ao parto.

No fim, quando ele se encontra sozinho na sala onde uma mulher pariu sem perceber sua presença, como se ele fosse feito de vidro, uma enfermeira lhe pergunta: Já pensou o que aconteceria se o senhor não estivesse por perto?

E ele responde para si mesmo que provavelmente aquela mulher teria seu filho com maior tranquilidade.

Nesses dias em que todas as pessoas intimamente ligadas à causa da humanização dos nascimentos no Brasil estiveram mobilizadas devido à intervenção da justiça durante o trabalho de parto de Adelir, na cidade de Torres-RS, esse capítulo do livro do Dr. Ric Jones não me saía da cabeça.

E se não tivesse acontecido essa intervenção judicial?

Muito provavelmente Adelir teria parido com mais tranquilidade. Talvez a cesariana estivesse mesmo em seu caminho, já que a maioria dos obstetras hoje não sabe assistir um parto, apenas realizar cirurgias.

Mas assim como a intervenção do dentista mergulhador deu origem a uma jornada de auto conhecimento, de superação de medos e de fortalecimento de vínculo, quem sabe as intervenções desnecessárias pelas quais passam diversas mulheres durante o trabalho de parto Brasil afora, com Adelir representando o ápice da violência obstétrica no Brasil, não saiamos todas mais fortalecidas em nosso vínculo com nosso corpo, que inclui a escolha da via de parto.

Eu vivi a minha jornada em busca de um parto digno, respeitoso, seguro, íntimo. Tive duas oportunidades de parir nessa vida. Trilhei meu caminho e durante esse percurso tive muita ajuda. Felizmente me cerquei de pessoas que pensavam como eu, afastei aquelas que não entendiam minhas escolhas. Para minha sorte, a vida me levou para longe de Torres-RS, minha cidade da infância. Mas eu poderia ter sido Adelir.

Como você deseja parir quando for a sua vez?

2 comentários:

  1. Sabe que eu tenho pensado muito nisso (boa parte de culpa sua! rsrs).. sobre como eu queria que fosse da próxima vez, sobre o que teria que ser diferente, sobre como é difícil acontecer coisas que são naturais e fisiológicas...
    A primeira coisa que consigo pensar é que eu queria que não fosse preciso lutar para se conseguir, simplesmente pq é natural, pq estamos preparadas para isso, pq é o mais seguro, pq é assim que tem que ser.
    Queria que não fosse preciso pagar um carro usado (além de planos caríssimos) para se conseguir parir com respeito. Esses dias comentei com marido, que em outra geração eu lembro de ouvir as família dizendo que tinha que juntar dinheiro para a cesárea, agora a coisa se inverteu, e fico preocupada de surgirem outras tantas dificuldades...
    Acho que o caminho é muito longo, mas nós (todas as mulheres que querem um cenário diferente) estamos caminhando... e isso já é alguma grande coisa!!!
    A caminhada ainda é muito longa.. e eu me sinto só engatinhando!!!!
    Obrigado pelo incentivo aos primeiros passos!!!
    Bjs!

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    Respostas
    1. Seria bom que tudo caminhasse assim, né? Naturalmente, calmamente e que nós voltássemos a nos preocupar apenas com o dinheiro de uma cesárea necessária...Mas como não é assim, que sigamos dando nossas engatinhadas, nossos primeiros passos, nossa corrida final. Porque vale a pena! A jornada e o destino! Beijos!

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